O novo livro de Antony Beevor dÁ-nos a notÁvel descriÇão de uma batalha de um mÊs entre o gelo e o nevoeiro das Ardenas onde o assassÍnio de prisioneiros se banalizou, onde os americanos mostraram valentia e onde Hitler gastou o último trunfo da guerra.
Depois de Estalinegrado, do avanÇo final do ExÉrcito Vermelho atÉ Berlim, do Dia D, da libertaÇão de Paris e de Creta, o historiador britânico Antony Beevor poderia continuar a explorar o interminÁvel manancial da II Guerra Mundial na Europa dedicando-se a descrever a salvaÇão da ForÇa ExpedicionÁria Britânica em Dunquerque, a devastaÇão da batalha de Kursk, o cerco de Leninegrado ou aos sangrentos bombardeamentos aliados na Alemanha que culminaram com a tragÉdia de Dresden. Mas nesta sua nova viagem pelos capÍtulos do mais brutal e desumano conflito da HistÓria, Beevor preferiu dedicar-se à tentativa desesperada de Hitler em travar o avanÇo anglo-americano na frente ocidental no final de 1944. A opÇão justifica-se pela importância que os combates nas Ardenas tiveram no desfecho da guerra, em Maio do ano seguinte, mas como esses combates tiveram uma duraÇão razoavelmente limitada no tempo (cerca de um mÊs) e ocorreram num espaÇo fÍsico relativamente exÍguo, o objecto do seu estudo e da sua descriÇão acaba por não ter o fÔlego das suas longas narrativas, com destaque para os magnÍficos Estalinegrado (1998) e A Queda de Berlim(2002).
O grande contributo que Beevor e a sua geraÇão de historiadores anglo-saxÓnicos trouxeram para a preservaÇão do interesse sobre a II Grande Guerra Mundial (o número de novas ediÇÕes sobre o tema continua a ser impressionante) justifica-se pela combinaÇão entre os preceitos da histÓria militar com os episÓdios da histÓria quotidiana dos soldados ou da populaÇão nas zonas de conflito. Esta combinaÇão permite-nos estabelecer nexos de causalidade entre as grandes decisÕes estratÉgicas e as suas consequÊncias no campo de batalha. A guerra deixa de ser um conjunto de setas num mapa para se tornar numa experiÊncia humana extrema. Este livro permite-nos por exemplo compreender atÉ que ponto o Ódio, a ferocidade e a desumanizaÇão que se associam aos acontecimentos da frente oriental tambÉm aconteceram no teatro ocidental. Um dia depois do inÍcio da ofensiva alemã, 84 prisioneiros americanos foram assassinados a frio em MalmÉdy depois de se renderam e, como vinganÇa e retaliaÇão, os americanos fuzilaram soldados capturados, mesmo os que empunharam bandeiras brancas, dispararam sobre ambulâncias com a cruz vermelha e bombardearam aldeias sem equacionar os custos civis. “É certamente chocante uma sÉrie de generais, de Bradley para baixo, ter aprovado abertamente o abate de prisioneiros como retaliaÇão”, escreve Beevor.
O que estava em causa nas Ardenas era para os alemães uma espÉcie de “última jogada”. O avanÇo aliado desde os desembarques na Normandia em Julho parecia imparÁvel e, apesar de alguns desastres, como o do lanÇamento de paraquedistas na rectaguarda alemã na Holanda, os americanos e britânicos tinham conquistado Aachen e comeÇado a demolir a Linha Siegfried em Outubro. Hitler comeÇa a criar os planos para suster estes avanÇos, concebendo um contra-ataque de surpresa pela rota que os alemães tinham percorrido com sucesso em 1870, 1914 e 1940 – a região montanhosa e densamente florestada das Ardenas. O objectivo era chegar ao rio Mosa, inflectir para Norte e isolar os britânicos, numa espÉcie de reediÇão de Dunquerque. O segredo era crucial - os que foram informados tiveram de assinar uma declaraÇão segundo a qual aceitavam ser executados se mencionassem sequer o assunto. As tropas sÓ seriam informadas no dia anterior ao ataque. Os seus oficiais propuseram uma operaÇão com uma escala menor, mas Hitler declinou. Era a hora de tudo ou nada. Não deve haver “inibiÇÕes humanas”, disse o ditador. “Uma onda de medo e de terror deve preceder as tropas”.
Nas primeiras semanas de Dezembro, 1050 comboios são envolvidos no transporte de tropas e equipamentos. DivisÕes inteiras são desviadas da Hungria ou da PolÓnia. Mas nem os americanos, nem os ingleses puderam suspeitar de tanta audÁcia. “Havia muitos fragmentos de informaÇÕes que, em conjunto, deviam ter indiciado as intenÇÕes alemãs”, escreve Beevor. Mas ninguÉm acreditava na capacidade alemã para lanÇar um contra-ataque. Os aliados subestimaram “a forma manÍaca como Hitler entendia os mecanismos do poder militar”.
Apesar da surpresa e da ousadia, os alemães, mais experimentados, foram incapazes de superar a resistÊncia e a tenacidade dos americanos. A resistÊncia inicial, em que pequenas companhias se opuseram durante dias a forÇas muito maiores, permitiu o reabastecimento de homens e material com uma rapidez e eficÁcia inesperados. Em trÊs dias, os americanos desviaram 190 mil homens para a frente. A enorme disponibilidade de equipamento, gasolina, alimentos e, principalmente, a hegemonia da forÇa aÉrea aliada mostraram ao alto comando alemão que a ofensiva estava esgotada uma semana depois de se ter iniciado. Os alemães nunca chegaram ao rio Mosa e ficaram entravados entre as linhas defensivas aliadas ou em cercos interminÁveis, como o de Bastogne, que Patton libertaria para sua glÓria e para glÓria do cinema.
A batalha das Ardenas seria a mais brutal da histÓria da frente ocidental, não apenas pela ferocidade e pelo clima de Ódio, mas tambÉm por ter sido travada em trincheiras cobertas de neve e nevoeiro, com as temperaturas a descerem baixo dos 20 graus negativos, fazendo com que os cadÁveres congelassem e fossem usados de parte a parte como barreiras defensivas contra o fogo inimigo. A histÓria deste livro perde-se por vezes nos excessos dos avanÇos e recuos de companhias, regimentos, divisÕes ou exÉrcitos, mas permite-nos imaginar de forma vÍvida o que aconteceu naquela zona inÓspita e gelada da Europa no final de 1944 e comeÇo de 1945.
EpisÓdios como o do cadÁver de um soldado alemão congelado, de braÇo estendido que fora colocado à entrada de um quartel americano, os fuzilamentos sumÁrios de prisioneiros e civis, a tortura imposta aos capturados que eram obrigados a caminhar descalÇos no gelo atÉ os pÉs ficarem queimados, a fome, a doenÇa, o frio são de facto sinais de uma guerra que se costuma associar ao Ódio vivido nas estepes da Ucrânia ou no avanÇo soviÉtico na Alemanha. Ressentimentos entre Omar Bradley, Patton e Eisenhower e o britânico egocÊntrico e mitÓmano Montgomery são aÍ descritos de forma exemplar, mostrando que a convicÇão de Hitler numa ruptura entre os aliados não era assim tão descabida. E hÁ depois os relatos de protagonistas como Hemingway e as suas amantes, de uma MarlÉne Dietricht deslumbrada com os revÓlveres com coronha de madrepÉrola que Patton lhe oferecera, a memÓria de J. D. Salinger ou o relato de Kurt Vonnegut, um dos 8000 prisioneiros da 106ª Divisão que foi enviado para Dresden e aÍ viveu entre 13 e 15 de Fevereiro de 1945 a terrÍvel sÉrie de bombardeamentos aÉreos que descreveria no pungente Slaughterhouse-Five (Matadouro 5 Ed Bertrand).
Autor de um público vasto e fiel em todo o mundo, Antony Beevor volta a deixar-nos uma soberba descriÇão de uma nova faceta da guerra de 1939/1945. As Ardenas não foram para a Alemanha o princÍpio do fim, que ocorrera jÁ na sequÊncia de Estalinegrado e de Kursk, em 1943. Mas o delÍrio de Hitler e a ideia errada de que os americanos não estavam dispostos a lutar (a principal causa da derrota) marcaram os meses que se seguiram. “Não hÁ grandes dúvidas de que o empenho posto nas Ardenas e subsequente razia das forÇas alemãs, sobretudo das divisÕes Panzer, tinha fragilizado mortalmente a capacidade da Wehrmacht para defender a frente oriental”, escreve Beevor. A teimosia em não reconhecer o seu fracasso levou Hitler a desperdiÇar vidas (80 mil baixas) e equipamentos em cercos inúteis como o de Bastogne apenas para ter um trunfo de propaganda. Os custos foram desastrosos. Ainda antes de os aliados terem recuperado todo o territÓrio ocupado pelos alemães nas Ardenas, a 12 de Janeiro, 6.7 milhÕes de soldados do ExÉrcito Vermelho preparavam-se para a sua última etapa. Em Maio, estavam em Berlim.