Senhores,
Eu comentei sobre o relato a seguir, no tópico do Assef “Banco de Couro e extintores alemães”. E para não poluir demais o tema dele, abro esta postagem para contar uma história interessante a respeito do veterano de guerra alemão que conheci, há muitos anos.
Aconteceu por volta de 1983. Eu costumava levar meu Passat TS para revisão na concessionária VW Tianá, em Vila Isabel, no Rio. Cheguei a ficar conhecido por alguns atendentes de tanto revisar lá os carros da Volks que tive, durante um bom tempo. Um dia, enquanto eu esperava o atendente bater meu orçamento, vi que eles tinham posto em exposição um impecável motor antigo de fusca sobre um cavalete, no centro do saguão de atendimento.
Eu estava justamente montando meu Kubelwagen 1/9 da ESCI. Na época era um kit de luxo, de modo que eu procurava caprichar em todos os detalhes. Achei um barato constatar que o motor do kit era idêntico em quase tudo ao motor de verdade, então comecei a tomar nota dos vários detalhes que via, num pedaço de papel. Desenhei aquilo que faltava no modelo, além de conexões variadas de cabos, fios e outras esquisitices que só modelista gosta. Se já existissem celulares com câmera, seria uma festa.
Tão distraído eu estava na minha diversão, que nem reparei o atendente (era quase xará meu) com a papelada pronta ao meu lado, e curiosíssimo sobre o que diabos eu estava rabiscando ali. Pediu para ver os desenhos e quando eu lhe expliquei o objetivo daquilo, ele perguntou, admirado, se eu também gostava daqueles “assuntos de guerra”. Ele próprio era outro interessado no tema.
Meu xará fez uma cara engraçada quando falei da minha paixão pelo assunto, e disse que nesse caso eu ia adorar conversar com um senhor que trabalhava lá. Era um alemão que lutara na guerra e que sabia tudo sobre mecânica da Volks. Beleza, bater papo com um alemão veterano de guerra é uma chance rara, e pedi que ele me apresentasse ao sujeito. O atendente falou mais sério e disse que tinha uma condição: O alemão era sobrinho de um general muito famoso, e que se me apresentasse a ele, tinha que prometer fingir que ainda não sabia de nada. O alemão só ia comentar sobre o parentesco dele caso sentisse confiança na minha pessoa. Eu prometi, é claro. Minha curiosidade já estava na estratosfera, como se pode imaginar.
Agora vem a porrada. Por favor, terminem a leitura antes de achar que estou inventando coisas.
Ele me perguntou se eu já ouvira falar do Marechal Rommel, pois este era o tio do sujeito que trabalhava ali. Olhei na cara do atendente e perguntei se estava de sacanagem comigo. Ele manteve a postura e reafirmou o que acabara de dizer. O veterano alemão era sobrinho do Rommel, chefiava um setor de mecânica da Volkswagen, e no momento trabalhava na Tianá Veículos?? Na hora eu não acreditei nem um pouco naquela conversa, mas assim mesmo segui o atendente até o pátio da concessionária, onde mais adiante estava o tal alemão conversando com algumas pessoas. Esperamos a conversa acabar e observei o sujeito, enquanto isso. Era um senhor nos seus 60 anos, forte, atarracado, quase calvo e fumava feito uma chaminé, com piteira. Lembrava o Rommel? Em alguns momentos sim, mas podia ser a minha imaginação.
Ao sermos apresentados, a primeira coisa que notei foi o forte sotaque alemão. Ponto pro atendente. Eu tinha que me esforçar para entender boa parte do que dizia, mas ele me entendia sem dificuldades. Então comecei um papo sobre motores de fusca e como eles tinham mudado pouco em mais de 40 anos. Perguntei sobre detalhes diversos até ganhar o interesse do alemão. Daí falei sobre o Kubelwagen e se por acaso ele saberia que carro era aquele. O alemão riu e disse que cansou de dirigi-los e fazer consertos ligeiros neles durante a guerra (O Kubelwagen era meio que descartável, projetado para durar em torno de 1 mês. Se precisasse de conserto pesado, pegavam um novo). A conversa sobre a Segunda Guerra engrenou. Ele contou que havia se formado em engenharia mecânica no começo da guerra. Então alistou-se na Luftwaffe, primeiro como mecânico, quando dirigiu, montou e desmontou muitos veículos. Depois, passou a atuar como observador traseiro num Arado (se entendi bem, era esse o avião). Nessa altura, a concessionária estava fechando o expediente, e combinei um novo papo quando voltasse para pegar meu carro, em dois dias.
Voltei lá com as instruções do kit da ESCI para mostrar a ele. Não lembro mais do primeiro nome do homem, mas lembro que era um nome alemão bem comum, como Hans, ou algo assim. Para simplificar, vou chamá-lo aqui de Seu Hans.
Seu Hans ficou confuso quando viu as instruções do Kubelwagen. Não tinha a menor idéia do que eu estava tentando fazer, pois nunca ouvira falar em plastimodelismo. Quando finalmente entendeu o que era, me perguntou por que alguém se interessaria em construir o modelo daquele carro alemão, usado numa guerra, há 40 anos? Para ele, não fazia sentido. Já viram a quantidade de coisas que ele ainda tinha que descobrir, não?
Eu tinha acabado de aerografar de marrom os bancos do meu Kubelwagen, e resolvi perguntar se eram daquela cor mesmo. Ele negou. Disse que eram pretos. Era couro tingido de preto e todos os veículos militares alemães que vira até então eram tingidos assim. Quando o couro se tornou escasso devido à guerra, os alemães passaram a produzir um material sintético imitando couro, também preto. Eu não consegui entender bem que tipo de material sintético ele se referia, mas ficou entre napa e algo feito de plástico. Muitos anos depois dessa conversa, eu pude comprovar o que ele disse (está no tópico do Assef), através de livros e da Internet. Também perguntei como era a chave de ignição do Kubel. Ele disse que era de aspecto comum, e diante da minha insistência, rabiscou com lápis uma para mim, no tamanho natural. Acho que tenho este desenho guardado até hoje. E sim, os bancos do meu Kubel também até hoje estão errados, haha. Desse ponto em diante, Seu Hans devia me ver como um Nerd completo, mesmo que esta palavra ainda não estivesse em uso, nos idos de 1983.
O papo com o seu Hans volta e meia era interrompido por terceiros. Daí ele voltava, pegávamos um café no balcão, acendíamos um cigarro, e eu pedia que continuasse.
Ele contou que após a Luftwaffe ter sido quase toda eliminada, muito do que restou do pessoal de terra foi reaproveitado em outras unidades. Ele foi designado para a tripulação de um meia-lagarta com flak. É interessante lembrar que ele sempre se referia a qualquer veículo pelo nome completo. Ele não dizia “Panzer”, por exemplo. Dizia “Panzerkampfwagen”, e era assim com todo tipo de equipamento. Quando perguntei que meia lagarta era, a resposta veio completa em alemão, de modo que não sei dizer qual tipo exato de meia-lagarta ele operou. Perguntei se então havia combatido na divisão Hermann Goering, mas ele desconversou. Percebi que ele ficava mais à vontade com as questões técnicas, portanto procurei não insistir. O motivo eu saberia logo.
A unidade dele estava na Normandia. Seu Hans contou que o meia-lagarta deles era novinho em folha (alô galera do “envelhecimento”. ) e estava camuflado com galhos de árvores, numa estrada secundária, durante o pandemônio do Dia D. Perguntei se ele tinha visto aviões aliados, tipo uns Spitfires, os meus preferidos. Ele respondeu batendo no peito “Se eu vi? Dois deles atiraram em mim e nos meus companheiros!”. Disse que estavam lá na tal estradinha, cuidando da vida, quando os dois caças passaram zumbindo por cima deles (ele disse “os aviões tinham listras embaixo das asas, sabe?” ). Ele e os demais torceram para que não tivessem sido notados, mas prepararam-se para atirar. Giraram o flak e viram quando os dois Spitfires fizeram a curva lá adiante e já voltaram mandando bala, com toda grossura possível. O flak mal fez alguns disparos. Seu Hans disse que só deu tempo de eles pularem do carro e se embrenharem na mata ao lado. O meia-lagarta acabou-se num instante (Lembrei agora uma frase do Churchill: “Nada no mundo é tão excitante quanto alguém atirando em você, e errando”).
Daqui em diante o relato dele ficou meio confuso, mas deu a entender que tiraram os uniformes e desertaram por algum tempo. Disse isso achando graça nele mesmo.
Acho que a maioria dos colegas aqui também ficaria maravilhada em ouvir esses acontecimentos da boca de um veterano. Eu queria preservar tudo isso e perguntei ao Seu Hans se ele concordaria em ser entrevistado e filmado, pois aquilo merecia. Ele me olhou bem nos olhos por uns momentos, viu se não éramos observados e puxou a carteira do bolso. Tirou a identidade, entregou na minha mão, bateu com o dedo no documento e perguntou se eu conhecia aquele sobrenome. Era Rommel. Perguntei, muito casualmente, se aquele Rommel seria o mesmo Rommel, o famoso estrategista. Sim, ele era sobrinho do Marechal Erwin Rommel, a Raposa do Deserto. Falou um pouco da grande admiração que sentia pelo tio, da vida em família, e falou também do primo dele, filho de Rommel, ainda vivo na época, e um político famoso na Alemanha pré-unificação. Cumpri a promessa com o meu xará atendente e fingi grande espanto. Mas nem precisava fingir nada, eu estava sinceramente surpreso e honrado em conhecer aquele senhor. Por causa do nome, continuou ele, tinha medo de ser assassinado por algum extremista judeu ou alguém assim. E ele já tinha visto isso acontecer com outros veteranos de guerra alemães. Ele disse que, assim como o tio famoso fez, não abraçou a causa nazista e odiava Adolph Hitler. "Aquele demônio maldito acabou com a Alemanha”, falou. Entrou jovem para a Luftwaffe não para assassinar gente, mas para mexer com máquinas e motores, a grande paixão dele.
Então eu perguntei o que aconteceu em seguida. Ele contou que passado um tempo, conseguiu voltar para a sua unidade (deve ter contado uma boa história, para não ser fuzilado!). Participou de combates aqui e ali, e o fim da guerra o pegou em Berlim. Lutou como soldado comum de infantaria contra os russos e disse que os tanques soviéticos passavam por cima das pessoas em tal quantidade, que em alguns lugares as poças de sangue chegavam à altura do tornozelo. Nem criança escapava. Pela primeira vez, notei que os olhos dele ficaram marejados e ele se emocionou de verdade com as lembranças. Daí me falou, com o sotaque carregado, “Você muito jovem, não saber dessas coisas. Não pode fazer ideia do que aconteceu em Berlim. Não vou falar mais de guerra e gente morrendo.” Pediu que dali em diante a conversa se limitasse a máquinas e veículos, e eu respeitei. Mesmo assim contou que foi feito prisioneiro pelas tropas soviéticas. Antes de ser mandado para um campo de prisioneiros, ele e muitos outros foram obrigados a desmontar inúmeras fábricas subterrâneas alemães. Disse que até os umbrais das portas e parafusos dessas fábricas foram desmontados, embalados e levados para a URSS. Levou muito tempo fazendo isso. Mas assegurou que “os americanos foram mais espertos, pois levaram os nossos cientistas”. Passou anos aprisionado e, em meados dos anos 50, foi libertado. Voltou para a cidade natal, ficou um período lá e, nos anos 60, veio para o Brasil. Não teve muita dificuldade em conseguir emprego aqui, na Volkswagen, devido à grande experiência como engenheiro mecânico. E talvez com a ajuda do nome de família também.
Eu já tinha alugado o cara por um tempão e estava na hora de ir embora. Convidei-o para vir à minha casa ver a minha “coleção de máquinas” (de plástico) e os livros que eu tinha sobre o AfrikaKorps e o tio dele. Ele combinou de aparecer no fim de semana. Quando viu a quantidade de blindados da Segunda Guerra que existe para montar (e estávamos em 83!), ficou totalmente pasmo. Disse que nunca ia imaginar que tais coisas eram fabricadas. Cada modelo, ou kit ainda na caixa, que eu mostrava a ele, era imediatamente reconhecido e chamado pelo nome completo em alemão. Ele examinava longamente as ilustrações da Tamiya, de queixo caído com a exatidão dos detalhes. Emprestei dois livros em alemão para ele, da Podzun-Verlag, e um tinha muitas fotos do tio. Também o convidei para comparecer a uma reunião do nosso extinto grupo de modelismo. Muitas das reuniões foram feitas no salão de festas do meu prédio, e eu disse a todos quem seria o convidado de peso que teríamos em breve. Levei o João Barone para conhecer o Seu Hans pessoalmente, na Tianá, e lá eles bateram um bom papo. Outros como o Ajax (modelista conhecido no Rio, mas acho que não participa da Webkits), o Valls (que talvez já fizesse parte do grupo), o Manoel (El Coyote) talvez ainda lembrem disso. Para a reunião marcada, encomendei canapés e salgadinhos. Cerveja e refrigerantes também, tudo pago do meu bolso. Muita gente veio, mas Seu Hans deu o cano e não apareceu.
Passados uns três meses, me telefonou para devolver os livros emprestados e pediu humildes desculpas por não ter comparecido à reunião. Segundo ele, na hora H bateu o velho receio de se defrontar com alguém que o julgasse de forma equivocada e isso terminasse em violência. Preferiu continuar com a vida discreta que levava. Voltei na Tianá, peguei meus livros, conversei com Seu Hans mais algumas vezes e depois não o vi mais. Mais tarde a concessionária fechou e eu jamais soube do "Seu Hans" novamente. Espero que tenha levado o resto da vida em paz.