Poucos homens nascem, morrem e são lembrados. Uma ínfima parte desses poucos são admirados. Não existe perfil para ser admirado (embora exista para ser rechaçado); não existe fórmula: o acaso, as circunstâncias, o modo como alguém opera perante as intempéries desse oceano chamado vida, a sobrevivência em meio ao caos, a capacidade de dobrar o orgulho alheio e conseguir seguidores, e não ser dobrado ou seguir os outros… tudo isso pode fazer um grande nome para figurar na história e na memória daqueles que passam conscientes pela existência. Quando morrermos, aquilo que restou da maioria absoluta de nós se perderá para sempre; restarão fotos, objetos, propriedades que não serão mais associados aos nossos feitos, às nossas conquistas e perdas, nem a nós mesmos. Duas ou três gerações depois da nossa morte bastarão para que sejamos definitivamente apagados da existência, e contaremos apenas como estatísticas de um passado recente, ou como nomes a figurar numa árvore genealógica de um jovem descendente curioso. Às vezes nem isso… sabia? A verdade é que muitos vivem como se não fossem morrer, e depois morrem como sequer tivessem existido. Essa é a regra. Apenas os Grandes viverão para sempre (ao menos enquanto a humanidade durar), seja nas notas de rodapé dos livros, nas biografias em seu nome, nos nomes de praças e ruas, na memória dos estudantes de História, nos pequenos batizados em sua homenagem, seja nas marcas no tempo e no espaço impossíveis de serem apagadas. E dentre os maiores Grandes que já passaram pela Terra, figura um que, desde os primeiros anos de vida, tinha tudo para dar errado. E o universo ora conspirava ao seu favor, ora contra, e adianto-lhes: ele venceu. Seu nome era Frederico, o Grande, e há mais de dois séculos após a sua morte milhares de pessoas ainda se lembram dos seus feitos. Eu sou um deles. Então permita-me contar um pouco sobre sua história.
A MORTE DO MENINO E O NASCIMENTO DO REI
O Rei Frederico II, o Grande, nasceu em Berlim em 24 de Janeiro de 1712. Num Inverno. Filho de uma nobre princesa alemã com o príncipe-herdeiro ao Trono da Prússia (país que hoje não existe mais), desde cedo enfrentou as violências e humilhações públicas do pai, sempre muito desconfiado com relação a tudo o que Frederico fizesse. E embora tenha ficado adolescente em meio a nove irmãos que poderiam muito bem tirar-lhe da atenção do pai e pulverizar mais um pouco sua raiva, as violências apenas aumentaram, fazendo do jovem Frederico um verdadeiro palhaço até mesmo entre os empregados palacianos, que vendo seu Rei maltratar o próprio filho, não desperdiçavam tempo para também se aproveitar de impotência e constrangimento do herdeiro. Seu pai, coroado como Frederico Guilherme I da Prússia um ano após o nascimento de Frederico, nunca escondeu a preferência pelo outro filho, Augusto Guilherme, dez anos mais jovem do que o herdeiro, pois aquele era uma criança que gostava de brincar de soldadinho e de participar com o pai de treinamentos e cerimônias militares — atividades que Frederico detestava.
Cada vez mais isolado em sua própria casa, o jovem Príncipe Frederico encontrou no tenente Hans Hermann von Katte o amigo que nunca teve entre seus irmãos e escassos cortesãos. O próprio von Katte quem instruiu Frederico ao tiro e à esgrima, ajudando a tornar menos pior a relação dele com o violento Rei, conhecido por todos como o Rei-Soldado. A gentileza, a erudição e a lealdade do tenente logo conquistaram o jovem Príncipe. Reza a lenda que foi aquele militar o primeiro e também o último grande amor do nobre solitário.
A proximidade entre Príncipe e tenente ficou cada vez mais explícita, e o Rei Frederico Guilherme pôs em questão a felicidade e o entusiasmo nunca antes vistos no filho quando este estava na companhia do amigo. Por causa disso que Frederico brigou com seu pai, e pouco depois, em 5 de Novembro de 1730, com então 18 anos, decidiu fugir com von Katte para a Inglaterra, escoltado por um grupo de soldados. Seria na terra de Shakespeare que Frederico buscaria asilo e suporte, pois era onde reinava o irmão da sua mãe, seu tio Jorge II.
Mas o intento de fuga não deu certo. Alguém revelara o plano ao Rei. Caçados por toda a Prússia, Frederico, von Katte e seu séquito foram encontrados e presos. O Rei então exige do filho a abdicação ao posto de Príncipe-herdeiro da Prússia para poder condená-lo à morte, mas sua proposta encontra resistência da Dieta Imperial do Sacro-Império, já que Frederico era também herdeiro ao título de Eleitor de Brandemburgo, e uma condenação sumária do herdeiro de um Eleitorado sem transgressão justificável poria em risco o próprio sistema eleitoral ao Trono Imperial o qual Frederico Guilherme devia obediência. O Sacro-Imperador Carlos VI intervém a favor de Frederico e impede sua morte. O Rei desiste da intenção de executar o próprio filho, mas encontra na vingança contra o tenente von Katte um modo de punir o Príncipe. Ainda preso, Frederico é obrigado a ver a execução do seu amado amigo, a quem profere as últimas palavras, em francês: “Veuillez pardonner mon cher Katte, au nom de Dieu, pardonne-moi!” (“Por favor, meu querido Katte, em nome de Deus, perdoe-me!“) Então ele vê o sangue jorrar e a cabeça do belo amigo rolar pelo chão. Frederico desmaia. A espada do carrasco cintila com sangue quente, e a Modernidade começa a tomar um novo rumo…
Nesse momento o futuro do mundo é completamente modificado: graças a ele o mapa da Europa sofrerá mudanças, a Prússia dominará parte dos demais Estados Alemães, inventará o Despotismo Esclarecido (divisor de águas entre o absolutismo antigo e o constitucionalismo modero hoje tão exaltado), a Guerra dos Sete Anos (causada diretamente por ele) arruinará econômica e colonialmente a França (dando margem para a Revolução Francesa de mais tarde) e reinventará o modo de fazer guerra e política. Pelo sentimento de vingança contra a morte do amado, Frederico colocará a Prússia no tabuleiro das nações. A morte de um amado e a vida amargurada de um só homem serão cruciais para moldar o mundo tal como conhecemos. Mas a explicação disso deve ficar para as conclusões.
A IMPLACÁVEL BUSCA POR VINGANÇA
Frederico Guilherme só dá a liberdade ao filho após casá-lo forçadamente com uma jovem duquesa chamada Isabel, em 1733. Nos sete anos seguidos, pai e filho trocarão brevíssimas palavras um com o outro.
A morte só veio para Frederico Guilherme em 1740. Dez anos de prisão domiciliar tornaram Frederico um homem erudito, instruído em política e guerra, e um flautista quase profissional. Nessa época ele compôs vários concertos para flauta; escreveu um livro, O Anti-Maquiavel, para moralizar novamente a política e argumentar que a única função do soberano é a de produzir felicidade e bem-estar para todos sem utilizar-se da tirania (obra esta que muitos diziam ser dedicada ao seu pai, que nunca chegou a lê-la, pois ela só foi publicada um ano depois de sua morte); correspondeu-se com filósofos de toda a Europa, em especial para Voltaire, que viria a ser seu amigo, chegando a convidá-lo para morar em seu palácio (uma estadia que durou seis anos). Foi nessa época que ele traçou o que seria o Despotismo Esclarecido: o absolutismo monárquico casado com valores iluministas, pelos quais Frederico, graças à amizade com Voltaire, era apaixonado. Berlim, a capital do Reino da Prússia, nunca mais seria a mesma; pela primeira vez a cidade sediava grandes eventos, verdadeiras turnês de espetáculos sinfônicos e dramáticos que a colocaram no mapa da cultura europeia. A ciência e a filosofia ressurgiram na Academia Real de Berlim, deixadas de lado no reinado de seu pai. Naturalistas receberam o financiamento real para percorrer o mundo conhecido em busca de novas espécies e descobertas. Arquitetos da Suécia, da Península Itálica, da França e da Áustria foram para a Prússia apresentar seus projetos ao Rei Frederico, cuja intenção era a de tornar as cidades do seu país tão belas quanto aquelas do coração francês (como Paris, Versalhes, Saint-Denis e Orleãs). Mas apesar de toda a beleza que Frederico intencionava para a Prússia, seu primeiro ato como rei foi buscar a vingança.
Frederico tinha absoluta certeza de que os austríacos estavam envolvidos com a delação do plano de fuga ao seu pai, cuja consequência foi a morte do seu amado von Katte, embora o próprio Imperador Carlos VI lhe tenha socorrido de última hora da execução. Assim como a Prússia ficou de luto pela morte do seu monarca, Frederico Guilherme, em 31 de maio de 1740, a Áustria também foi abalada com a morte de seu Imperador, Carlos VI do Sacro-Império, morto em 20 de outubro do mesmo ano. Nessa altura Frederico já era rei há pelo menos cinco meses, e foi graças ao morte do Imperador que ele viu o momento certo de promover sua tão esperada reparação.
A descendência de Carlos VI era só de mulheres, o que criou uma crise dinástica. Espanha e Prússia viram em um Príncipe da Casa de Wittelsbach, da Baviera, chamado Carlos Alberto, a melhor alternativa para um Imperador, a quem poderiam, mais tarde, controlar no trono em Viena. Mas ninguém ousou contestar publicamente a possibilidade de uma mulher, Maria Teresa, filha de Carlos VI, subir ao trono… até Frederico atacar a Silésia, território austríaco, anexá-la à Prússia e iniciar o que ficou conhecido na história como a Guerra de Sucessão Austríaca. Iniciou-se em 16 de Dezembro de 1740, sete meses após Frederico subir ao trono. Bastou um ano, em 1741, para que os austríacos saíssem de uma vez do rico território, escorraçados na Batalha de Mollwitz, a primeira travada pelo jovem rei, e também a última que ele abandonaria seus soldados em campo de batalha, pensando que havia perdido para os austríacos, embora tivesse vencido. Até o fim da vida Frederico se referia a Mollwitz como “minha escola”, pois depois dela jurou que nunca mais abandonaria seus soldados e nunca mais esperaria o inimigo atacar primeiro. Veio daí o ditado que terminou apenas na Primeira Guerra Mundial (1914-1918): “O Exército Prussiano sempre ataca primeiro“.
Vitorioso e com um território a mais à sua fragmentada e pobre Prússia, Frederico não se deu por satisfeito. Embora os austríacos tivessem neutralizado a ganância do rei prussiano cedendo-lhe a Silésia por tratado em 1742, só dois anos mais tarde, em 1744, ainda com a Guerra de Sucessão Austríaca acontecendo, Frederico invadiria a Boêmia, território da Áustria, e marcharia sobre Praga. Contudo, dessa vez não conseguiu êxito, e decidiu encastelar-se na Silésia. Feita as pazes com os austríacos novamente, em 1745, após a vitória decisiva na Batalha de Hohenfriedberg, e terminada a guerra que ele iniciara, Frederico se retirou para Berlim, onde promoveu uma rápida ascensão de seu país, agora com um território maior e muito mais gente para participar de suas fileiras e para trabalhar nos quase vazios campos de Brandemburgo. Começa também a construir uma obra-prima da arquitetura fredericana: o Palácio de Sanssouci, em Potsdam. Mas Maria Teresa, a Imperatriz do Sacro-Império (e também da Áustria), a arquitetava alianças em busca de vingança contra Frederico, a quem ela nunca chamava pelo nome, tratando-o por “aquele homem mau“.