O Raid Roma – Tóquio (1920)
Às onze da manhã de 14 de fevereiro de 1920, dois biplanos S.V.A 9 decolaram do aeroporto romano de Centocelle. Hoje, esse campo, que ainda existe, está completamente cercado por área habitada, e somente helicópteros podem operar lá, mas era, naquela época, o maior aeroporto militar da capital. No entanto, apenas um pequeno grupo de pessoas compareceu àquela partida, dois ou três oficiais de serviço, dois comerciantes e o embaixador japonês na Itália. Começava um épico aéreo de mais de 17.000km.
A origem do vôo Roma-Tóquio nasceu na mente do poeta Gabriele D'Annunzio através da amizade que teve no período da turbulenta 1ª guerra mundial com o escritor japonês Harukichi Shimoi, um sincero admirador da Itália, tendo inclusive se alistado no exército italiano durante a guerra. O empreendimento deveria se constituir em um ato de amizade entre os dois povos e a demonstração das extraordinárias possibilidades do avião no início de seu desenvolvimento impetuoso.
Ao final da primeira guerra mundial o projeto tomou forma com a definição da aeronave a ser usada e os requisitos logísticos sem precedentes ligados ao vôo muito longo e complexo. O deslocamento nas várias etapas deveria ser realizado muitas vezes em locais remotos, sem mapas detalhados, sem referência visual conhecida ou mesmo sem linhas ferroviárias, telégrafo ou mesmo estradas e trilhas, muito menos pontos com recursos materiais para a necessária manutenção dos aparelhos.
Por parte do governo italiano, o interesse estava no afastamento de D'Annunzio da Itália pois sua atuação política realizada nos agitados anos do pós-guerra nas questões relativas a região do Fiume (anexação a Itália) causavam embaraço ao governo.
De fato, D'Annunzio, em uma carta datada de 3 de janeiro de 1920, enviada ao Coronel Berliri, o principal organizador da empresa, declara que ele não participaria do Raid. Apesar disso, e dado que já havia se avançado bastante com o empreendimento, tendo o governo liberado verba para tal, é decidida a sua continuação.
D'Annunzio (ele próprio foi piloto durante a guerra) elaborou uma lista de pilotos e mecânicos qualificados. Um dos indicados, Arturo Ferrarin, recuperava-se de uma operação em Paris quando foi informado que dali uma semana estava marcada a saída do Raid. Apesar do prazo, Ferrarin aceitou o desafio.
No planejamento elaborado pela Direção Geral de Aeronáutica, foram adquiridos 15 aviões: onze biplanos S.V.A 9, dois biplanos Caproni Ca-3, um biplano Caproni Ca-5 e um triplano Caproni Ca-4. Desses 15 aviões, cinco SVAs formavam o núcleo que deveria alcançar Tóquio, juntamente com os 4 Caproni. Outros 4 SVAs seriam deslocados aos locais mais importantes ao longo da rota para constituir uma reserva destinada a substituir as máquinas que não pudessem continuar; e finalmente, os dois restantes S.V.A seriam os “desbravadores” indo a frente da formação principal para preparar apoio e recebê-los e estabelecer contato e auxílio com os locais. Estes dois S.V.A pilotados por Arturo Ferrarin e Guido Masiero juntamente com os mecânicos Roberto Maretto e Gino Cappanini foram ao final os únicos a alcançar o objetivo e chegaram a Tóquio, ou melhor, suas tripulações pois Ferrarin foi quem de fato alcançou o objetivo com seu avião. O piloto Masiero não pode ser considerado como tendo completado o vôo pois seu aparelho quebrou e ele teve que completar a chegada através de um vapor tomado em Xangai. Todos os outros aparelhos, inclusive os Caproni que saíram em vôo já em janeiro, sofreram diferentes acidentes e contratempo que os impediram de continuar, assim, o que era previsto apenas como apoio acabou se tornando o elemento principal e foi quem alcançou o objetivo final.
Guido Masiero e Arturo Ferrarin com o mascote que os acompanhou
Vale lembrar quais eram as dificuldades de voar naquela época, especialmente em áreas tão distantes e desfavorecidas. Os organizadores previram, mas apenas parcialmente; de fato, eles não pensavam que calor excessivo e as tempestades de areia iriam corroer os motores; que o início da estação das chuvas tornariam impraticáveis muitas das terras preparadas para o pouso; que a umidade das noites tropicais encharcaria o tecido das telas dos aviões; e finalmente, que a fatalidade cega aconteceria contra as equipagens do raid.
O destino imediatamente fez sua primeira vítima, assim que as pessoas começaram a falar sobre o vôo Roma-Tóquio. Designado como líder de esquadrão da formação, que originalmente deveria ter sido composto apenas de aviões S.V.A, foi o capitão Natale Palli; bravo piloto, ele pilotara o avião de D'Annunzio durante o vôo de ataque sobre Viena em agosto de 1918. D'Annunzio queria ir ao Japão com ele, e todos os outros pilotos o reconheceram como o líder indiscutível.
Foi, portanto, Palli quem fez os primeiros contatos com Ansaldo, o fabricante do S.V.A, e começou a estudar o trajeto. Aviador consciente não deixou de treinar para o raid, fazendo vôos de longo distância. Em um desses vôos, em 23 de março de 1919, ele se deparou com uma nevasca sobre os Alpes e, como piloto muito experiente, conseguiu pousar ileso nas altas montanhas; mas ele viveu apenas dois dias. Equipes de resgate o encontraram, congelado, ao lado de seu fiel S.V.A. Ele não sobreviveu à temperatura extremamente baixa.
Após a morte de Palli, a organização do raid foi assumida pela Diretoria da Força Aérea, então na época um departamento do Ministério dos Transportes, que cuidava dos assuntos da nascente aviação civil e lidava com missões comerciais aeronáuticas no exterior. A situação econômica da época, a agitação social, as greves, etc, é de se admirar que a Diretoria da Força Aérea tenha conseguido implementar um mecanismo complexo como a organização do raid Roma-Tóquio. No final de 1919, quase todo o pessoal designado para as etapas estava espalhado, e portanto, vários chegaram as vésperas da partida. As equipes escolhidas foram as seguintes:
Tenente Edoardo Scavini e Segundo Tenente Carlo Bonalumi no biplano Caproni Ca-3 (três motores de 150hp cada)
Tenente Luigi Garrone, Tenente Enrico Abba, e os mecânicos Alfredo Momo e Alfredo Rossi no triplano Caproni Ca-4 (três motores de 300hp cada)
Tenente Leandro Negrini, Segundo Tenente Giovanni Origgi e o engenheiro Dario Cotti em um biplano Caproni Ca-3 (três motores de 150hp cada)
Tenente Virginio Sala, Tenente Innocente Borello e o engenheiro Antonio Sanità em um biplano Caproni Ca-5 (três motores de 200hp cada)
As equipes dos sete SVAs eram compostas pela seguinte tripulação:
Tenente Guido Masiero e mecânico Roberto Maretto
Tenente Arturo Ferrarin e mecânico Gino Cappanini
Piloto Giuseppe Grassa e Capitão Mario Gordesco
Capitão Umberto Re e o operador de cinema Bixio Alberini
Capitão Ferruccio Ranza e mecânico Brigidi
Tenente Amedeo Mecozzi e Tenente Bruno Bilisco
Tenente Ferruccio Marzarie e engenheiro Giuseppe Damonte
Também houve dificuldades com a escolha dos aviões. Os primeiros pilotos que tiveram a ideia de voar pensavam apenas no S.V.A. Essa abreviação indica os projetistas de aviões, os engenheiros Savoia e Verduzio e a empresa de construção Ansaldo. Foi, talvez, o S.V.A o avião de maior prestígio que saiu de uma fábrica italiana durante o conflito da primeira guerra mundial. Italiano em todos os detalhes, desde o design até a execução, da célula ao motor que era, nas máquinas padrão, um SPA de 220hp. Originalmente projetado como monoposto de reconhecimento, mais tarde foi construído em variantes de dois lugares, tanto para treinamento quanto para reconhecimento.
O S.V.A 9 utilizado no Raid Roma - Tóquio
O SVA, nos anos que se seguiram à Primeira Guerra Mundial, foi protagonista de grandes empresas esportivas, como o vôo sem escalas entre Turim-Paris, feito cruzando os Alpes, ou o vôo à América do Sul atravessando os Andes. Máquina incrivelmente robusta, construída de acordo com os mais rigorosos princípios da ciência aeronáutica, obteve um excelente sucesso de exportação graças também à reputação conquistada com essas empresas e ações.
No entanto, algumas aeronaves multi-motores Caproni, cuja fama havia disparado durante o conflito, estavam planejados para se juntarem aos SVAs. Os grandes bombardeiros de Caproni eram as únicas máquinas aliadas que podiam realizar ações em profundidade atrás das linhas inimigas e portanto, tinham sido usados em todas as frentes de batalha. Na época do armistício, os Estados Unidos estavam preparando para construir várias centenas deles sob licença.
Apesar do sucesso de suas aeronaves, o engenheiro Giovanni Caproni, fundador da famosa companhia, não quis, a princípio, permitir que seus aviões participassem do raid. Ele explicou que eram máquinas que precisavam de pistas longas para decolagens e aterrissagens e, portanto, inadequadas para operar em campos improvisados. No final, cedendo à insistência, ele concordou; mas agora os materiais de reposição já haviam sido enviados para os pontos de parada, então os Caproni decolaram sem esperança de substituir os motores danificados por longos vôos. Isso, como esperado, causou sua eliminação progressiva do raid.
De acordo com o que foi estabelecido, os Caproni foram os primeiros a sair. O Ca-3 de Scavini e Bonalumi alçaram vôo em 8 de janeiro. Alguns dias depois, seu vôo terminou devido a um pouso que acabou fora da pista na Síria, no meio de uma tempestade de areia. Em 18 de janeiro, o Ca-4 de Abba e Garrone decolou de Centocelle, fazendo um magnífico vôo sem escalas de Roma para Thessalonika na Grécia. Posteriormente um incêndio a bordo fez com que ele fosse retirado do raid enquanto voava em direção a Izmir.
Em 27 de janeiro e 2 de fevereiro, respectivamente, o Ca-5 e o outro Ca-3 saíram. Ambos terminaram o vôo na Ásia Menor devido a falhas relatadas durante pousos particularmente difíceis. Em 14 de fevereiro, foi a vez dos “desbravadores” de apoio, Masiero e Ferrarin. Em que consistia sua tarefa, provavelmente ninguém sabia. Eles tinham que abrir genericamente a marcha dos outros SVAs até um certo ponto e depois esperar pela chegada dos outros aparelhos. Sua preparação e partida ocorreram sob a bandeira da improvisação.
Por exemplo, Ferrarin se preocupou em encontrar mapas das áreas a serem sobrevoadas; e ele descobriu que o segundo de Mecozzi, Bilisco, trouxera alguns mapas detalhados muito bons de Paris. Ele então pediu para examiná-los, e os guardou para si. Mas Bilisco lembrou e os pediu de volta. Então Masiero e Ferrarin "requisitaram" um atlas da Diretoria da Força Aérea, ao que eles enviaram através de um carabiniere que deveria esperar e traze-lo de volta do Ministério. O atlas foi devolvido mas não sem antes de Ferrarin rasgar as páginas que o interessavam, enquanto Masiero entretinha o carabiniere com a história de suas dificuldades.
Arturo Ferrarin
Algumas páginas do atlas e uma bússola que Ferrarin trouxera de volta da Holanda - onde ele havia ido em 1919 para uma série de apresentações aeronáuticas - constituíam todo o aparato de navegação do piloto. Quanto a Masiero, de acordo com o combinado, ele seguiria Ferrarin, voando com ele em formação. Deve-se dizer que esse objetivo não pode ser mantido e, de fato, os dois pilotos geralmente voaram sozinhos.
De se destacar também a instrumentação exígua, espartana do aparelho S.V.A. que era dotado apenas de um conta-giros, um termômetro da água do radiador, um manômetro da pressão do óleo, um indicador de combustível, e para orientação Ferrarin instalou uma bússola retirada de um caça inglês Sopwith, nem mesmo um indicador de velocidade ele tinha, este era calculado pelo piloto tomando por base um ponto de referência no solo e um relógio.
Os mecânicos Gino Cappanini e Roberto Maretto
Continua...