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Amigos: depois de um perÍodo sem escrever aqui no WK, volto a  contribuir com as traduÇÕes as quais tenho prazer em fazer.

 

Desta vez traduzi a IntroduÇão do livro Ivan's War, da historiadora Catherine Merridale.  A obra trata sobre o perfil do soldado do exÉrcito russo durante a Segunda Guerra Mundial, conhecido genericamente como Ivan.  É um livro em que a autora se preocupa em levantar principalmente as caracterÍsticas desse personagem pouco explorado e atÉ então misterioso.

 

Não achem que aqui haverÁ uma descriÇão de tÁticas, estratÉgias, equipamentos e outras consideraÇÕes tÉcnicas de equipamentos usados na guerra.  Caso estejam procurando isso, não irão encontrar.   A autora se preocupou em estabelecer quem era o soldado do ExÉrcito Vermelho que enfrentou a Wehrmacht e, entre os anos de 1941 e 1943, eram os únicos a enfrentar em solo europeu os alemães.  Ou seja, o enfoque É na parte humana e não tecnolÓgica.

 

SÓ traduzi a IntroduÇão (que por si sÓ jÁ É longa) pois todo o livro tem mais de 450 pÁginas.  Eu jÁ o li e achei muito bom.

 

Para aqueles que desejam saber mais sobre o Ivan e que gostam deste tipo de leitura, bom proveito.

 

Abrs,

Raguenet

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Não há sombra alguma no centro da cidade de Kursk em julho.  Conseguir isto requer um grande esforço já que Kursk está no meio de um dos solos mais ricos da Rússia, em uma terra negra que se estende para o sul e para oeste na Ucrânia.  Aonde existir água, haverá álamos e, ao longo das estradas que levam à cidade, as candelárias-dos-jardins e a ervilhaca roxa crescem até chegarem na altura dos ombros.  A terra também é rica para os vegetais, para os pepinos dos quais os russos fazem conservas com vinagre e endro, para os repolhos, batatas e abóboras.  Nas tardes de sexta-feira durante o verão, a cidade esvazia rapidamente.  Os cidadãos saem para as suas dachas, chalés de madeira que tanto os russos amam e os campos ficam pontilhados com mulheres inclinadas com regadores.  Esta maré muda durante a semana.  O interior flui em direção à cidade.  Saia um pouco do centro e você achará vendedores de rua oferecendo em voz alta cogumelos de chapéus gordos, tortas caseiras, ovos, pepinos e pêssegos.  Dê a volta pela catedral, construída no século XIX para celebrar a vitória russa sobre Napoleão Bonaparte, onde há crianças agachadas na grama atrás de um rebanho de cabras.

 

Mas toda essa exuberância está banida da praça central.  Ali neste espaço havia, há cem anos, prédios e quintais cobertos com videiras, porém hoje em dia tudo é asfalto.  Quando estive lá o tempo estava tão quente que não me senti à vontade de contar os passos – uns dois campos de futebol?  três? – mas a praça é muito, mas muito grande.  Sua grandeza não traz nenhuma relação com os prédios no seu entorno e menos ainda com a população local que toca sua vida.  Táxis – modelos russos caindo aos pedaços e customizados com ícones, rosários e estofamentos com imitações de pele – se agrupam na extremidade mais próxima do hotel.  Em intervalos de meia-hora, um ônibus velho, sufocado sob o seu próprio peso, se arrasta em direção à estação ferroviária localizada a várias milhas de distância.  Mas os seres vivos evitam este espaço vazio e nada convidativo.  Apenas em um lado, onde o parque público começa, existem árvores e que não são do tipo que dão sombra.  São pinheiros cinza-azulados simétricos e pontiagudos ao toque, tão rígidos que parecem terem sido feitos de plástico.  Eles se perfilam em fileiras militares já que são plantas soviéticas, as mesmas que crescem em qualquer outro espaço público em qualquer outra cidade russa.  Procure por elas ao lado da estátua de Lênin, procure perto do memorial da guerra.  Em Moscou você pode vê-las em uma fila sob os muros vermelhos como sangue de Lyubyanka.

 

Esta praça central – Praça Vermelha ainda é o seu nome – adquiriu o seu atual formato depois da Segunda Guerra Mundial.  Kursk foi tomada pelo avanço das tropas alemãs no outono de 1941.  Os prédios que não foram destruídos durante a ocupação, foram minados ou esburacados com tiros durante a campanha para a sua retomada em fevereiro de 1943.  Muitos foram dilacerados durante o inverno rigoroso quando combustível e lenha acabaram.  A velha Kursk, centro da província e lar de 120.000 pessoas em 1939, foi quase que completamente destruída.  Os urbanistas que a reconstruíram não tinham interesse em conservar o seu charme histórico.  O que eles queriam da nova Praça Vermelha não era um espaço onde a população local poderia relaxar – há poucos lugares como esse de qualquer maneira – mas um campo de manobras para o Exército cujos números sempre iriam assoberbar a população da cidade.  No verão de 1943, bem mais do que um milhão de homens e mulheres soviéticas participaram de uma série de batalhas na província de Kursk.  Os campos ondulados que se espalham em direção à Ucrânia presenciaram na época uma luta que não apenas iria decidir o destino da Rússia ou mesmo da União Soviética, mas o desfecho da guerra na Europa.  Quando aquela guerra tinha terminado, o coração da cidade provinciana foi transformado em uma arena para cerimônias de tamanho similar monstruoso.

 

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Independente de qualquer medida que você possa adotar, esta guerra desafia o senso humano de escala.  Os seus próprios números são esmagadores.  Em junho de 1941, quando o conflito começou, em torno de 6 milhões de soldados, alemães e soviéticos, se prepararam para lutar ao longo de um front que se entrelaçava por mais de 1.000 milhas (1.600 quilômetros) através de pântanos e florestas, dunas costeiras e estepe.  Os soviéticos ainda tinham 2 milhões de soldados já armados nos territórios longínquos a leste.  No espaço de semanas, eles seriam necessários.  Com o envolvimento cada vez maior no conflito, ambos os lados formariam mais soldados para lançá-los nas campanhas territoriais ávidas por consumi-los em carne e osso.  Não era incomum, nos idos de 1943, que o número total de homens e mulheres comprometidos com a luta no fronte do leste excedesse em qualquer momento o montante de 1 milhão.

 

O ritmo das perdas também era similarmente extravagante.  Em dezembro de 1941, após seis meses de conflito, o Exército Vermelho tinha perdido 4,5 milhões de homens.  Esta carnificina estava além de qualquer imaginação.  Testemunhas descreveram os campos de batalha como um cenário de aço e ferro queimado.  As figuras redondas das cabeças sem vida refletiam o sol de final de tarde do verão como batatas emergentes do solo recém revolvido.  Os prisioneiros eram conduzidos em multidões.  Mesmo os alemães não tinham guardas suficientes, quanto menos arame farpado, para acomodar 2,5 milhões de soldados do Exército Vermelho capturados nos cinco primeiros meses.  Uma campanha, a defesa de Kiev, custou aos soviéticos perto de 700.000 entre mortos e desaparecidos no espaço de algumas semanas.  Ao final de 1941 quase que a totalidade do exército dos anos predecessores à guerra, tropas que compartilharam o pânico daquelas primeiras noite ainda em junho, estava morta ou fora capturada.  E esse processo se repetiria assim que outra geração fosse convocada, enfiada dentro de um uniforme e morta, capturada ou ferida sem a possibilidade de recuperação.  No total, o Exército Vermelho foi destruído e renovado pelo menos duas vezes durante o curso desta guerra.  Oficiais – cujas perdas chegavam a 35%, ou 14 vezes a mais do que o índice do exército do Czar na Primeira Guerra Mundial – tinham que ser supridos tanto quanto os homens.  Em 1945, a ajuda americana de arrendamento (land-lease) fornecia aos soviéticos lâminas de barbear, mas dificilmente o grande número de adolescentes que formavam as recentes reservas do Exército Vermelho iria precisar delas.

 

Render-se nunca foi uma opção.  Embora os britânicos e os americanos continuassem a atacar os alemães pelos céus, os soldados do Exército Vermelho estavam amargamente conscientes, a partir de 1941, que eles eram a última e principal força militar que continuava a enfrentar as tropas de Hitler em terra.  Eles ansiavam pelas notícias de que os seus aliados haviam aberto um segundo front na França, mas mesmo assim continuavam a lutar conscientes de que não havia outra opção.  Essa não era uma guerra econômica ou territorial.  Seu princípio era ideologia, seu objetivo o aniquilamento de um modo de vida.  Derrota significava o fim do poder soviético, o genocídio dos eslavos e dos judeus.  A persistência veio a um preço terrível: o número total de vidas soviéticas cobrado pela guerra excedeu 27 milhões.  A maioria delas era de civis, vítimas desafortunadas da deportação, da fome, de doenças e da franca violência.  Mas as perdas do Exército Vermelho – estamos tratando aqui de mortes – excederam os 8 milhões deste total hediondo.  Esse número facilmente supera a soma total de militares mortos dos dois lados – aliados e alemães – da Primeira Guerra Mundial e contrasta profundamente contra as perdas das forças armadas inglesa e americana entre 1939 e 1945 as quais somam um pouco menos que 250.000 para cada*.  O Exército Vermelho, conforme um veterano explica, era “um moedor de carne”.  “Eles nos convocavam, nos treinavam e nos matavam” lembra outro.  Os alemães menosprezavam este processo e o comparavam ao de produção em massa, mas os regimentos continuavam a marchar, mesmo quando um terço do território soviético estava nas mãos do inimigo.  Em 1945, o número total de pessoas que foi mobilizado pelas forças armadas soviéticas excedeu os 30 milhões.

 

*Aqui deve-se fazer uma ressalva.  Não está especificado no texto da autora se ela se refere a estes mortos como baixas em solo europeu ou em toda a Segunda Guerra Mundial ou mesmo sendo baixas apenas do Exército de cada país.  De qualquer maneira, uma rápida pesquisa no Wikipédia mostra que o número total de mortos nos EUA e na Grã-Bretanha durante os anos de 1939 e 1945 apresenta um número maior.  No primeiro caso, o total de mortos foi de  407.000 enquanto que no segundo, o total de óbitos chegou a 383.800.  Mais especificamente, as mortes no Exército Americano foram de 234.874, enquanto que as mortes no Exército da Grã-Bretanha foram de 144.079.  De qualquer maneira, mesmo com esse reparo, ainda assim o total somado fica bem abaixo do número de vítimas fatais do Exército Vermelho. (N. do T.)

 

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A saga épica dessa guerra foi contada inúmeras vezes, mas as histórias desses 30 milhões de soldados ainda não foram exploradas.  Nós conhecemos uma grande parte das tropas americanas e inglesas e elas se tornaram estudos de caso para muito o que se sabe sobre combate, treinamento, trauma e sobrevivência em tempos de guerra.  Mas quando o assunto é sobre a guerra de extremos ao longo do front soviético, contrariamente, a maioria do que sabemos diz respeito ao soldado do exército de Hitler.  Mais de sessenta anos se passaram desde o triunfo do Exército Vermelho e, por sua vez, o Estado pelo qual os soldados soviéticos lutaram foi abolido.  Mas Ivan, o fuzileiro russo, equivalente ao Tommy britânico ou ao Fritz alemão, permanece misterioso.  Para nós, aqueles milhões de conscritos das tropas soviéticas, beneficiários de suas vitórias, permanecem descaracterizados.  Por exemplo, nós não sabemos de onde vem, sem falar no que acreditavam e nas razões pelas quais eles lutavam.  Também não sabemos como a experiência da guerra os mudou, o quanto a sua violência desumana formou o sentido de vida e de morte.  Desconhecemos sobre o que falavam, quais lições, brincadeiras ou qual sabedoria popular que eles compartilhavam.  E também não fazemos ideia quais refúgios eles guardavam nas suas mentes, quais lares eles sonhavam em ter e quem e como amavam.

 

Essa não foi uma geração comum.  Em 1941, a União Soviética, um Estado cuja existência começara em 1918, já havia sofrido uma violência de escala sem precedentes.  Os sete anos após 1914 foram um período de uma crise implacável: só a guerra civil entre 1918 e 1921 traria uma luta cruel, a falta desesperadora de tudo – desde de combustível para aquecimento até pão e cobertores – doenças epidêmicas e um novo flagelo que Lênin preferiu chamar de guerra de classes.  A fome que veio a reboque também foi terrível à luz de qualquer critério.  Mas uma década depois, em 1932-33, quando a fome ceifou mais de 7 milhões de pessoas, a grande fome de 1921 iria parecer, como uma testemunha explicou, “uma brincadeira de criança”.  Também nesta década a sociedade soviética havia sido dilacerada durante a imposição do primeiro entre vários planos quinqüenais para o crescimento econômico, impelindo os camponeses para a coletivização, destruindo os oponentes políticos, forçando alguns cidadãos a trabalharem como escravos.  Esses homens e mulheres que foram chamados à luta em 1941 eram sobreviventes de uma era de turbulência e que custou mais de 15 milhões de vidas em um pouco mais de duas décadas.

 

“Essas pessoas eram especiais” disse um velho soldado.  Eu ouvi esta expressão dezenas de vezes na Rússia e sua implicação é de que tal provação, da mesma maneira quando um fogo santo limpa a impureza, criou uma geração excepcional.  Historiadores são inclinados acreditar nesta versão, ou pelo menos respeitam e consideram as evidências de uma resistência inabalável e do auto-sacrifício por parte de toda uma nação.  “Explicações racionais da vitória Soviética nunca são realmente convincentes” escreveu Richard Overy na sua fidedigna obra sobre a história da guerra na Rússia.  “É difícil escrever uma história da guerra sem considerar que a percepção da “alma” ou do “espírito” russo é importante demais para as pessoas comuns a ponto de ser descartada como mero sentimentalismo.”  Os veteranos gritavam para mim: “Patriotismo!  Você não irá encontrar isso hoje entre os jovens.”  Isso pode ser verdade, mas poucos fizeram uma reflexão sobre a motivação dos soldados cujas vidas foram intoxicadas pelo próprio Estado pelo qual eles iriam lutar.  Poucos imaginaram também a percepção que os futuros soldados adquiriram com os pais ou com os amigos mais velhos os quais sobreviveram às outras guerras, viram outros governos russos ou que aprenderam a se manterem vivos ao verem os outros morrerem.  As histórias dos soldados são constituídas por uma teia de paradoxos e 60 anos de memória apenas serviram para adicionar mais confusão.

 

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Há, é claro, a duradoura versão oficial de tudo isso incutida no mito do herói da União Soviética.  Você pode achá-lo talhada na pedra em cada memorial de guerra soviético da mesma maneira que foi descrito em inúmeras canções durante a guerra.  Uma de suas expressões mais clássicas é uma longa poesia, a épica história do soldado fictício Vasily Tyorkin que deu ao seu autor, Aleksandr Tvardovsky o Prêmio Stalin em 1944.  Na sua versão, e também nas músicas e pinturas da época, tal soldado era o homem ideal.  Ele era simples, saudável, forte, gentil, altruísta e sem medo da morte.  Ele praticamente nunca conviveu no lado obscuro da guerra.  Na realidade seu olhar estava sempre voltado para o futuro, para a utopia resplandecente a qual ele estava preparado para sacrificar a própria vida.  Fosse para dar lugar à emoção – afinal ele era humano e deveria haver um pouco – esta deveria ser do tipo sentimental e piegas.  Ele gostava das rimas poéticas e gostava também da bétula-branca, das donzelas russas e da certeza do amor simples.  Se ele morresse, como milhões o fizeram, seus entes queridos e seus companheiros iriam entristecer mas nunca haveria palavrões, mau cheiro,  fumaça de cigarro ou vísceras expostas.  Acima de tudo, não haveria uma ponta de pânico, falha ou dúvida para ofuscar a história, quanto menos a insinuação de que esse poderia ser o homem que pilhou as cidades nas quais seu exército tinha libertado.

 

O poema sobre Tyorkin era o preferido entre os soldados.  Eles gostavam das rimas simples e do ritmo suave, da linguagem russa pueril e do tema patriótico.  Eles também pareciam gostar do tratamento eufemístico da guerra uma vez que os mesmos ajudaram a perpetuá-lo.  Por décadas e avançando durante os anos de 1990, os veteranos da guerra falavam e escreviam como uma espécie à parte.  Eles sabiam bem a maneira como a guerra deveria parecer para eles mesmos – ou melhor, como manter uma memória saudável aliviando do terror mútuo – e eles construíram uma vida civil ao manterem um roteiro pré-estabelecido.  Seus autores favoritos eram os escritores de guerra, mas nenhum livro soviético sobre a guerra menciona pânico, automutilação, covardia ou estupro.  Os censores do governo, os quais baniram os trabalhos de escritores como Vassily Grossman por descreverem o medo dos soldados, trabalhavam de mãos dadas com a necessidade dos sobreviventes em aplacar o clamor do seu passado.  A memória coletiva era usada para aliviar e não para recordar; a geração da guerra restabelecia contato com o tempo de sua juventude como ex-escoteiros que compartilhavam histórias nas suas tendas.  Durante os feriados nacionais, os veteranos fazem brindes, relembram dos amigos e então se juntam para cantar as músicas favoritas da guerra, a trilha sonora de dor e tristeza se transformando em uma lástima.

 

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Eu comecei a escrever este livro com o objetivo de ir além dos mitos da procura daquilo que outro escritor de uma outra guerra definiu como “verdadeiras histórias de guerra”.  A ideia começou quando eu terminei um trabalho completamente diferente, um estudo sobre morte e perda com relação principalmente às vítimas de Stalin.  Eu conversei com diversos veteranos para este projeto e ansiava em descobrir mais sobre o silêncio por detrás de suas histórias.  Eu também queria explorar a qualidade ambígua de sua auto-estima enquanto soldados já que, embora os veteranos do Exército Vermelho sempre são retratados como vitoriosos e continuam a se considerar como tal, a maioria também foi vítima de um dos mais cruéis regimes dos tempos modernos.  Eles manusearam armas e foram capacitados para tal, mas eles também cresceram em um mundo onde os cidadãos viviam sob a sombra da violência humilhante e arbitrária do Estado e, quando o serviço militar terminou, eles retornaram para ela.  Sua contribuição, como grupo, foi reconhecida mas muito daquilo pelo qual eles lutaram – por exemplo um governo mais aberto e o fim do medo – nunca seria superado.  Chega a ser irônico que o próprio Estado incutiu neles um sentimento de orgulho tão poderoso que poucos conseguiram enxergar como eles foram completamente deserdados.

 

À época, o projeto seguiu naturalmente a partir da minha escolha inicial mas uma vez que envolvia a guerra, eu só pude explorá-la mais recentemente.  O esfacelamento do Estado de um só partido, já que o comunismo soviético entrou em colapso, flexibilizou a pressão das histórias oficiais sobre as mentes das pessoas permitindo que uma vasta gama de memórias viesse à tona.  É possível agora dizer – e pensar – sobre assuntos que eram tabu na época do poder soviético.  As restrições sobre os pesquisadores também estão paulatinamente sendo eliminadas.  Documentos que eram vedados aos acadêmicos – e por sua vez negados à memória coletiva soviética – estão sendo colocados à disposição aos milhões.  Este livro não poderia ser escrito sem os maços de cartas dos soldados, os relatórios das polícias secreta e militar e as próprias anotações internas do Exército sobre o moral da tropa.  Era proibido aos soldados manterem um diário no front mas alguns ignoravam as regras e com isso foi possível ler dezenas de textos que sobreviveram, alguns sendo manuscritos escritos a lápis.  Eu também encontrei e estudei os relatórios de testemunhas uma vez que esta guerra foi travada, até um pouco antes dos últimos meses, inteiramente em solo soviético, através de vilas e fazendas onde civis ainda tentavam levar a sua vida.  Eu viajei aos campos de batalha como, por exemplo, Kursk mas também para Sebastopol, Kerch, Kiev, Istra, Vyaz’ma e Smolensk e em cada lugar eu tentei descobrir quem tinha lutado, o que tinham feito, o que a população local tinha visto.  Nos antigos dias do regime soviético, isto teria sido impossível.

 

Mas uma outra coisa mudou, mais sutil e mais crucial do que as regras nas viagens e sobre os documentos.  Durante o período soviético, a guerra não era um tópico para a pesquisa acadêmica àqueles identificados com o pensamento de direita.  Meus amigos na Universidade de Moscou durante a década de 1980 a viam como uma mistura de tédio – uma vez que eles sempre tinham de ouvi-la – e horror, sobretudo pela maneira em que as memórias genuínas sobre morte e luta tinham se transformado em uma lenda patriótica.  A guerra parecia pertencer a um Estado corrupto e ideologicamente falido.  Tal como um móvel desajeitado de segunda mão dentro de uma sala de aula abarrotada, ela era recente demais para ser história e grande demais para ser evitada.  Mas as gerações mudam e os jovens que crescem atualmente na Rússia nunca conheceram o poder soviético.  Poucos podem se lembrar das monótonas paradas militares do Estado e da forçosa misericórdia nacionalista sobre as lendas da guerra.  E tudo isso significa que eles são livres para fazer novas perguntas.  Um interesse renovado sobre a guerra de União Soviética, privado da hipocrisia dos últimos 50 anos, está promovendo novas pesquisas, novos debates, novos textos.  Em alguns casos, os próprios veteranos, libertos das restrições excessivas da cultura soviética, também começaram a revisitar e repensar a sua guerra.  A maioria das pessoas que eu conheci tinha prateleiras que estavam vergadas com o peso dos livros, das novas histórias, das novas memórias, das reimpressões de resoluções confidenciais.

 

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Em 2001, bem no início do trabalho para este livro, eu me candidatei para ministrar algumas aulas de história em escolas russas.  Em todos os casos, eu perguntei aos alunos, adolescentes, qual tema histórico que eles mais gostariam de recuperar e pesquisar .  Sem hesitar todos eles falaram sobre a Segunda Guerra Mundial.  “Essa gente idosa”, me contou uma aluna “eles tem realmente algo em especial.  Eu gostaria de ter ouvido com mais atenção as histórias da minha avó quando ela ainda era viva.”  Mas os parentes de outras crianças, em alguns casos bisavôs, sobreviveram.  Os alunos concordaram em me ajudar a entrar em contato com eles e de também registrar algumas dessas histórias para eles mesmos.  Alguns testemunhos que ajudaram a compor este livro foram resultado desta colaboração.  A energia e interesse de outros alunos floresceram em contribuições para as competições de artigos que a Memorial,  a Associação de Direitos Humanos baseada em Moscou, promoveu por vários anos.  Muitos dos artigos premiados foram baseados nas entrevistas enquanto que outros em coleções particulares de cartas.  Juntos, eles constituem em um arquivo informal da experiência humana na guerra.

 

Ao todo, 200 veteranos forneceram as entrevistas para esse livro.   Muitos deles conversaram diretamente comigo, sozinhos ou com um assistente que ajudou a localizá-los e a deixá-los à vontade.  Nós às vezes estávamos conscientes da estranheza e da limitação que pode ter sido provocada pela minha condição de estrangeira ou pela minha falta de conhecimento militar.  E o fato de ser mulher também não ajudava.  Para lidar com tudo isso eu pedi a um colega, um veterano do Exército russo e entrevistador profissional, para conduzir algumas entrevistas sozinho.  Aleksei foi para sua residência em Kaluga e passou o verão conversando com antigos soldados, muitos dos quais ele conhecia desde criança.  Nós descobrimos que algumas limitações ainda permaneciam, tais como os tabus sobre sexo e morte os quais nos separam dessa geração da guerra.  Nós também descobrimos – todos nós – que o peso dos anos, os mitos patrióticos e a auto-imagem que foi fabricada para os soldados em meio à guerra eram difíceis de serem erradicas em pessoas de extrema idade.  Apesar disso, algumas entrevistas se transformaram em amizades, diálogos que duraram vários anos.  Problemas que nenhum documento escrito pudesse resolver eram contornados ou solucionados com chá, vodka ou um vinho georgiano.  Mas apesar dos veteranos falarem abertamente sobre a amor, comida, viagens, campo e o clima e embora eles se relembrassem vividamente das amizades, poucos conseguiam retornar ao campo de batalha.

 

Tal restrição, iria eu descobrir, não é exclusividade das tropas soviéticas.  John Steinbeck, que visitou a Rússia logo após a guerra, passou pela experiência das batalhas.  Mas mesmo ele – como qualquer outro soldado que faz uma reflexão em combate – tinha certeza de que certas coisas, e as batalhas mais do que tudo, estão além de qualquer comunicação.  Steinbeck explica que, quando os soldados são retirados de combate, eles estão fisicamente e emocionalmente exauridos e tendem a escapar através do sono.  “Quando você acorda e pensa nas coisas que aconteceram” continua ele “elas já estão como que em um sonho.  Você tenta lembrar como que era e você não consegue conceber.  Os contornos na sua memória são vagos.  No dia seguinte a memória recua ainda mais até que muito pouco permanece... Homens em batalhas prolongadas não são mais seres humanos normais.  E quando depois eles parecem ser reticentes, talvez eles não se lembrem muito bem.”  As cartas dos soldados soviéticos e o testemunho dos sobreviventes de hoje sempre contam a mesma história.  Talvez existam alguns aspectos da violência onde a falta de memória seja uma benção.  Eu usei toda as fontes que pude encontrar, do testemunho à poesia, dos relatórios policiais aos bosques desfigurados para tentar reconstruir o universo da guerra.  Eu também utilizei relatos do Exército de Hitler já que em algumas ocasiões o inimigo tem uma percepção melhor do que os combatentes do outro lado.   Mas, no final, o silêncio reflete e verdade de forma mais fiel do que páginas e mais páginas de prosa.

 

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Outras entrevistas, porém, se revelaram frustrantes.  Ainda existe muita resistência na Rússia (embora em menor escala nas antigas repúblicas soviéticas) para reinterpretações da guerra.  As comemorações se transformam em uma fábrica dos mais variados tipos e, enquanto se preparam para as paradas em grande escala e para as cerimônias solenes nos memoriais, muitos dos beneficiários se ressentem de questionamentos sobre fatos e detalhes.  O governo russo também tem o seu interesse em preservar uma imagem positiva da guerra já que a vitória sobre o fascismo permanece como a maior conquista que a Rússia moderna pode se gabar.  Assim, as pesquisas sobre o conflito nunca foram encorajadas.  Existe o receio de pedidos de reparação e a possibilidade de reivindicações europeias sobre obras de artes saqueadas, mas este não é o âmago da questão.  O ponto é que as comemorações consolam os sobreviventes e elevam o espírito nacional.  Ajudam também a reforçar a fé nas Forças Armadas em um época onde todas as evidências apontam para uma negligência moral e o aumento da crise financeira.  E o sigilo pode se tornar um hábito.  O Ministério da Defesa ainda guarda seu enorme complexo de arquivos em Podolsk perto de Moscou.  A razão principal, provavelmente, é o medo da sistemática exposição das evidências sobre a brutalidade estatal, sobre covardia ou mesmo sobre insurreições organizadas.  Mas razões para isso não são necessárias.  Para um corpo estatal cujo o poder está centrado na sua inacessibilidade, o sigilo é um fim nele mesmo.

 

Os outros arquivos, como sempre, se revelam verdadeiros tesouros.  E ainda havia muito que não me foi permitido ver.  Algumas vezes a censura era primitiva.  Em alguns casos as páginas proibidas de um documento eram simplesmente colocadas em um envelope de papel pardo e fechado com um clipe de papel.  Outras vezes arquivos inteiros eram inacessíveis.  As regras pareciam imprevisíveis.  Em um arquivo me foi permitido fazer anotações sobre deserções mas não era possível copiar os nomes dos soldados infratores (e mortos).  Em outro, estatísticas sobre embriaguez estavam indisponíveis.  Enquanto isso, em um terceiro, era possível ler sobre embriaguez e deserção de todo um regimento, nomes e tudo mais.  Enquanto eu fazia minhas anotações, os funcionários do arquivo alegremente preparavam um chá e abriam um pacote de biscoitos.  O Ministério da Defesa teoricamente deve monitorar todos os documentos sobre a guerra e ele certamente mantém um acompanhamento de perto nas suas dependências, mas suas regras muitas vezes entram em conflito com leis generosas de acesso que governam os arquivos da Federação Russa.  Mais ainda, mesmo o Ministério não tem controle direto sobre a política de ex-territórios da União Soviética e que não mais pertence à Rússia.

 

A procura por Ivan, o soldado do Exército Vermelho, envolveu nesse caso, mais de uma viagem e em algumas vezes o caminho mais óbvio havia sido deliberadamente bloqueado.  O empreendimento também demandou um esforço de imaginação.  Antes de eu poder encontrar o verdadeiro Ivan, eu tive de me certificar que não estava à procura da minha própria imagem.  Um jovem recruta do exército de Stalin tinha crescido em um mundo tão diferente do meu que eu teria de começar dessa maneira: com a sua paisagem, linguagem, família, educação, medo e esperança.  Um Estado que alegava estar recriando as almas humanas, como Stalin o fez, tinha de deixar sua marca em cada jovem; seu universo mental foi tocado, senão inteiramente modelado, por ele.  Tal exército era formado por milhões e suas fileiras eram constituídas por conscritos e voluntários, por homens e mulheres comuns bem como por soldados profissionais.  De várias maneiras era um reflexo da sociedade da qual brotou e suas histórias espelhavam as virtudes e fraquezas deste mundo perdido.  Este livro leva em consideração os registros, tabelas e aquilo o que pode ser chamado de narrativas conflitantes da guerra, as histórias que emergiram quando a fumaça dissipou.  Mas também é o eco de várias centenas de histórias individuais feita por diaristas, escritores compulsivos de cartas, memorialistas, viúvas, órfãos, sobreviventes.  Um amigo arquivista em Moscou riu de mim quando eu parecia assustada.  Como sempre, ele podia ver o lado engraçado do meu plano ambicioso.  “Você escreveu Vida e Morte ou o que quer que seja” comentou ele.  “Agora você quer escrever Guerra e Paz.”

 

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Os soviéticos não foram o único povo a criar o mito Ivan.  Com sua paixão pela rotulagem social, os nazistas tinham as suas próprias definições sobre o eslavo dentro de um uniforme.  Para Goebbles, soldados soviéticos eram a “horda vermelha”, selvagens metade asiáticos que ameaçavam o modo de vida europeu.  Porém, a inteligência em tempos de guerra era necessariamente mais científica.  Investigadores militares nazistas fizeram suas anotações observando os combates, entrevistando seus próprios soldados e questionando os prisioneiros feitos por eles.  Mas embora eles admirassem as tripulações de tanques russos, ficassem aliviados com a falta de treinamento da infantaria e invejassem a sua disposição em morrer, mesmos os estudiosos de pensamento prático não podiam evitar a linguagem biológica.  “Os dois maiores grupos” dentro do Exército Vermelho, o da Grande Rússia e os da Ucrânia, “incorporavam os mesmo elementos raciais, produto do qual eles representam hoje” escreveu um oficial alemão.  “Dentro dessa mistura racial podem ser localizados um débil  traço sanguíneo do período gótico e da Idade Média.  Porém eu considero de fundamental importância a infusão de sangue Mongol.”

 

Tais considerações talvez representassem um pouco mais do que uma peça de antiquário não fosse por um público em particular.  Em março de 1947, logo após o colapso do Terceiro Reich, algumas das análises de caráter racista do Exército Vermelho feitas por estes oficiais eram empregadas pelo serviço de inteligência americano.  À época, os soviéticos não eram mais os aliados da democracia.  A Guerra Fria já se fazia presente e os responsáveis políticos nos Estados Unidos da América precisavam descobrir mais sobre o inimigo que agora eles enfrentavam.  Mesmo o soldado mais simples precisava ser instruído sobre as virtudes e fraquezas do inimigo.  Para ajudar neste processo educacional, os Departamento do Exército dos EUA preparou um panfleto, “Os métodos de combate russo na Segunda Guerra Mundial” na qual a segunda parte descreve “As peculiaridades do soldado russo”.

 

O panfleto começa com “As características desse semi-asiático são estranhas e contraditórias.”  Realmente os oficiais alemães tinham feito um bom trabalho.  Continua o panfleto: “Os russos estão sujeitos a estados de ânimo os quais, para um ocidental, são incompreensíveis; ele age como por instinto.  Como soldado, o russo é primitivo e descompromissado, com uma coragem inata mas morosamente passivo quando em grupo.” Ao mesmo tempo, “suas emoções o conduzem para um rebanho o que lhe dá força e coragem.” Privações não eram impedimentos para esses primitivos.  A resistência do Exército Vermelho no período de guerra em Stalingrado foi estabelecida como sendo um efeito colateral de uma cultura e dos genes asiáticos.  “Não é exagero dizer que o soldado russo não é afetado pelo terreno e pelo clima... o soldado russo requer apenas poucos recursos para o seu próprio uso.” Finalmente o Exército Vermelho não é confiável no uso de regras.  O resumo conclui: “Os alemães descobriram que tinham que ficar atentos contra deslealdade e tentativas de enganar por parte do soldado russo em particular além de pequenas unidades... uma aproximação desprevenida na maioria das vezes custava a vida de um alemão.”

 

 

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legal acompanhando.... o soldoado de  infantaria  americano  era  o G.I. (GOVERNEMENT  iSSUE...) , se   NÃO ME  ENGAno o infante  SOVIÉTICO ERA  CONHECIDO  COM Frontovik  (  talvez  nosso  caro colega  Valodyia, possa  nos  ajudar  como deve ser escrito em   russo).....  plastiresiabços  paulo r. morgado , sp - sp -

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Comentários da Guerra Fria como esses, com toda a sua vinculação racista, ajudaram a formar a imagem do soldado do Exército Vermelho para os povos de língua inglesa durante o final do século XX.  A maioria dos combatentes desumaniza o seu oponente.  É muito mais fácil matar alguém que parece ser completamente estranho, alguém que não apresenta a sua individualidade.  E os russos sempre pareceram ser tão difíceis, mesmo durante o breve período de quatro anos em que Stalin era uma aliado da democracia.  O soldado do Exército Vermelho talvez possa ser corajoso, “provavelmente o melhor material para do qual se forjar um exército” sob o ponto de vista de um observador inglês, mas a sua “espantosa resistência e tenacidade” e “sua habilidade em sobreviver à privações” eram desconcertantes, mesmo para um aliado.

 

Deixando as rotulagens racistas de lado, o certo é que o soldado soviético serviu a uma das mais ambiciosas ditaduras na história e grande parte foi instruída de acordo com seus princípios.  Neste sentido, a maioria foi profundamente saturada com a ideologia do regime e comparativamente mais do que o soldado da Wehrmacht uma vez que a propaganda soviética já trabalhava na consciência da nação há pelo menos quinze anos quando Hitler subiu ao poder em Berlim.  Cidadãos soviéticos também tinham a tendência de se isolar das influências externas e muito poucos (com exceção dos veteranos da Primeira Guerra Mundial)  tiveram a oportunidade para uma viagem internacional.  Eles compartilhavam uma linguagem em comum, um tipo de visão que fora engendrada para mostrar um mundo sob as cores do marxismo-leninismo.  Mas fora isso, a visão de que os soldados do Exército Vermelho eram uma horda sem individualidade ou mesmo produtos de uma única raça, é errada.

 

Os russos eram maioria nas forças armadas soviéticas durante a guerra.  Os ucranianos eram a segunda maior nacionalidade.  O Exército Vermelho também contava com outros grupos étnicos, de armênios a yakuts, bem como um grande número de pessoas que preferiam serem chamados de ‘soviéticos’ evitando assim a tradicional categorização em prol de um novo tipo de cidadania.  Entre os conscritos estavam incluídos operários qualificados, jovens que podiam transformar as suas habilidades com máquinas industriais no fácil manejo de um tanque.  Mas embora tais jovens eram os recrutas favoritos, suas fileiras também continham garotos vindos de vilas, muitos dos quais nunca tinham visto luz elétrica, quanto menos um motor, antes de serem convocados.  Recrutas vindos de regiões desérticas ou da estepe ainda precisavam conhecer rios mais largos, precisavam aprender a nadar.  Estes foram os que se afogaram mais rapidamente quando veio a ordem de atravessar os pântanos da Crimeia ou quando da travessia do Dnepr gelado.

 

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Havia também uma grande diferença entre a idade dos soldados.  A maioria dos conscritos havia nascido entre 1919 e 1925 mas os mais velhos, incluindo dezena de milhares nos seus 40 anos, também foram convocados.  Esses eram veteranos que se lembravam da Primeira Guerra Mundial, homens que conheciam o que era viver sob o jugo do Czar.  Sua mentalidade e expectativa eram completamente diferentes dos jovens vindos diretamente das escolas soviéticas.  Alguns ainda se lembravam dos diferentes tipos de exército.  Aquele do Czar era hierárquico, sua disciplina severa.  Mas durante a década de 1920 houve uma breve experiência com a supressão de classes, uma tentativa de construir o exército do povo, livre das gradiloquências, formalidades e detalhes em ouro no uniforme.  Os homens que se lembravam dessa época experimental carregavam uma suspeita dos exercícios militares e eram rápidos em condenar (e até a atirar contra) os jovens oficiais inexperientes.  Nunca houve um tipo único de exército.  Após alguns meses convivendo com ex-agricultores, ladrões de galinha, soldados profissionais, adolescentes e futuros poetas como ele mesmo viria a ser, o conscrito David Samoilov concluiu que “o povo não é como aquele recheio processado pronto para a máquina de fazer salsichas da história... uma simples língua, cultura ou destino dá lugar a características que muitos compartilham, aquelas coisas que nós costumamos chamar de espírito nacional.  Mas na realidade o povo é uma multiplicidade de personagens.”

 

Se a cultura soviética não foi capaz de construir um único tipo de homem, havia razões para suspeitar que própria guerra poderia fazê-lo.  É difícil conceber uma individualidade contra um panorama da carnificina industrializada ou mesmo de imaginar uma sensibilidade onde tanta coisa seria destruída pela fumaça, fedor e pelo barulho ensurdecedor.  Brutalização – ou como disse Omer Bartov, barbarização – é a palavra que vem à mente.  E mesmo assim esses soldados, como vários outros, tinham os seus próprios sonhos e desejos que variavam entre uma promoção no Partido Comunista, uma pequena folga, botas novas ou um relógio de pulso alemão.  Eles continuaram a escrever suas cartas para suas casas, a notar as mudanças no clima, na paisagem e nos animais domésticos.  Eles fizeram amizades também e trocaram experiências de seus lares, enrolaram cigarros, roubaram vodka, aprenderam novas técnicas.  O front não era apenas um mero teatro para mortos vivos.  Paradoxalmente, para aqueles que sobreviveram, a guerra lhes apresentou um novo mundo, paisagens as quais eles nunca teriam a oportunidade de conhecer se tivessem permanecido nas fazendas.  O Exército Alemão passou pelo processo oposto, marchando por sobre uma terra que chocou os ex-trabalhadores da Saxônia e Bavária e que se mostrava primitiva, bárbara, obscura, fria e suja.  Enquanto os primeiros destacamentos da Wehrmacht moviam em direção ao front, inicialmente vindo de Paris, os mais graduados soldados do Exército Vermelho frequentemente vinham de vilas onde viajar significava uma caminhada de cinco dias até a cidade.  Alguns dos infantes que saquearam Berlim, bebendo conhaques envelhecidos em xícaras de fina porcelana nunca haviam colocado o pé em um trem antes de entrarem para o exército e antes da guerra.

 

Comparações com outros exércitos mais do que sugerem que alguns aspectos eram específicos da cultura do Exército Vermelho; elas também apontam para temas aos quais as fontes soviéticas evitavam de enfatizar por si só.  Uma questão, a qual nenhum escritor nascido durante o período stalinista pensaria em perguntar, era o que motivava o soldado soviético a lutar?  Motivação em combate, como o espírito nacional, era uma questão que preocupava os especialistas militares nos EUA durante a década de 1950.  O resultado foi a teoria sobre a lealdade do pequeno grupo, a noção de que homens dão o seu melhor em batalha se eles tem o ‘companheiro’ (buddy), os ‘grupos primários’ os quais, diferentemente de religião e ideologia, realmente comandam o seu  fervor.  Essa noção acabou inspirando novas políticas em treinamento e no uso de tropas reservas além de se tornar senso comum para psicólogos sociais bem como para os responsáveis políticos.  Mas o Exército Vermelho não necessariamente  se enquadra neste caso.  Com certeza os batalhões deveriam treinar juntos atrás das linhas do front sempre quando recebiam novos reservas; ou, pelo menos, esse era o planejado.  Mas quando o índice de baixas era alto, quando o período de serviço médio de um infante era de três semanas antes de ser morto ou removido devido aos ferimentos, os pequenos grupos raramente duravam.

 

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Altos índices de mortalidade também afetavam a Wehrmacht e foi proposto que a função dos grupos primários nas linhas alemãs era moldada, por um lado, pela ideologia e, por outro lado, pelo medo.  O medo também fez a sua parte no Exército Vermelho embora, de início, os soldados tivessem menos medo dos próprios oficiais do que dos canhões alemães os quais chegavam a paralisar sua capacidade de lutar.  Ideologia também era uma figura central na vida dos soldados soviéticos.  Eles foram moldados para se verem não meramente como cidadãos dentro de um uniforme, mas como a vanguarda consciente da revolução, a ponta de lança de uma guerra justa.  Mas o quão efetivo a ideologia poderia ser para motivá-los e a maneira como ela conflitava contra crenças antigas,  incluindo religião e as tradições nacionalistas, essa é uma questão aberta para debates.  A retórica comunista talvez tenha contribuído em certos aspectos mas não é aceita de forma universal.  Nem mesmo a presença de Stalin como um Deus.  Durante a década de 1930 o nome de Stalin, em letras maiúsculas, aparecia em panfletos, jornais, e pôsteres em todos os lugares para onde o povo soviético olhasse.  Seu rosto também pairava em jornais e panfletos durante o conflito e seu nome era escrito em bandeiras coloridas que eram amarrados entre bétulas para abençoar os encontros dos soldados a céu aberto.   Mas alegar lealdade à onipresença de Stalin, ainda mais nas tropas no front de batalha, é uma outra questão.  “Para falar a verdade” escreveu mais tarde o poeta Yury Belash, “nas trincheiras, a última coisa que a gente pensava era no Stalin.”

 

De certa maneira, foi o treinamento que ajudou a construir a confiança nos soldados diante da falha da ideologia em conseguir convencê-los e confortá-los.  Em 1941 os recrutas soviéticos enfrentavam a força de combate mais profissional que o continente tinha visto.  Em 1945, eles a derrotaram.  Entre essas datas houve uma revolução na preparação dos soldados do Exército Vermelho, no pensamento militar, no uso e emprego da tecnologia e na relação do Exército com a política.  Essas mudanças, um dos pontos fundamentais do triunfo soviético, afetou a vida de todos os soldados e muitos escreveram e falaram sobre elas.  Para alguns, todo o processo era um incômodo especialmente quando, em homenagem ao fascínio soviético pelo estilo americano de gerenciamento, os métodos usados lembravam a preparação de uma linha de produção.  Mas a maré mudou, Stalingrado resistiu, e o seu progresso nos dois anos seguintes sugeriu que os métodos de treinamento do Exército Vermelho eram cada vez mais eficientes.  O quanto eles lembravam os métodos alemães, o quanto cada lado aprendeu com o outro é uma questão.  Outra questão é o espaço para a retórica do partido e da crença comunista dentro de um dos campos mais técnicos.

 

Finalmente há o problema o qual toda fonte soviética permanece em silêncio.  O trauma, no Exército Vermelho, era virtualmente invisível.  Mesmo o custo cobrado pela guerra nas famílias dos soldados raramente foi discutido.  Mas o impacto e a angústia de tudo aquilo que os homens presenciaram no front era praticamente um tabu.  Podem haver poucos lugares mais terríveis do que Stalingrado, Kerch ou Prokhorovka e poucas visões mais perturbadoras do que os primeiras constatações das execuções em massa em Babi Yar, Maidanek ou Auschwitz.  Mas as descrições oficiais não se pronunciam sobre trauma, stress de batalha ou mesmo depressão.  Doenças mentais, mesmo entre as tropas, raramente são mencionadas nos relatórios médicos contemporâneos.  Disfarçadas de doenças do coração, hipertensão ou distúrbios gástricos, elas ainda atormentam os relatórios dos hospitais do pós-guerra sem obter a atenção necessária.  A questão não é se os soldados sofriam de stress e sim de saber como eles encaravam e lidavam com esta situação.

 

Atrelado a isso existe o problema de longa data que é a adaptação aos tempos de paz.  Em quatro breves anos, os conscritos do Exército Vermelho se tornaram profissionais, guerreiros qualificados, conquistadores.  Mas não havia muito espaço para qualidades como essas enquanto Stalin viveu.  A volta para casa poderia ser tão confusa quanto as primeiras semanas de um soldado no seu novo uniforme, isso há muito tempo.  Para muitos a confusão continuou por décadas.  O processo de ajuste podia abranger problemas familiares, pobreza, depressão, alcoolismo, crime violento.  Talvez a vitória final dos sobreviventes deva ser mensurada na sua idade avançada, nas suas conquistas mais comuns, ao compartilhar doces e chá, nos quadros dos netos, no cuidar dos tomates na horta da sua dacha.  Este triunfo, o menos espetacular de todos mas o mais duradouro, é parte da singularidade desta geração, um aspecto da qualidade especial que aqueles alunos, que me ajudaram a escrever este livro, podiam sentir mas não conseguiam denominar.

 

F I M

Amigos: era isso.  Fim da Introdução do Livro IVAN escrito pela inglesa Catherine Merridale.  Do ponto de vista literário, um dos melhores livros que li.  Gostaria de traduzir o resto, mas atualmente fica difícil.  Ademais gostaria de traduzir parte de um outro livro que trata sobre o soldado alemão durante a Segunda Guerra Mundial.  Quem sabe?

 

Bem, espero que tenham gostado.

 

Abrs,

Raguenet

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