Se você respondeu “nada”, errou!
Terminei de ler “Chega de Saudade”, de Ruy Castro. O livro narra a história da Bossa Nova, cobrindo um período que começa no final dos anos 40 e vai até o surgimento da MPB. Uma leitura com muito humor sobre os nossos cantores e compositores mais conhecidos, sobre os lances pitorescos, as brigas, bebedeiras, as parcerias como Tom e Vinícius, e explica a origem das músicas famosas que ganharam o mundo (como Garota de Ipanema) e porque este novo ritmo tornou o Brasil famoso, a partir dos anos 60. De quebra, conta como foram os “Anos Dourados”, especialmente aqui, no Rio, e dá uma espiada geral no governo militar.
Disposto em ordem cronológica, o texto de Ruy Castro vai revelando em detalhes o comportamento daquele pessoal todo, e lá pela segunda metade dos anos 50, João Gilberto já era campeão de manias e esquisitices. Agora já se sabe de onde vêm as excentricidades que o deixaram em má situação hoje. Então surge em cena um certo fotógrafo, residente em Copacabana, chamado Chico Pereira. O nome soou bem familiar, mas achei não ter nada a ver...
Segundo o autor, Chico é quem batia as fotos para todas as capas de discos da Odeon e clicou muitos nomes famosos no estúdio que tinha em casa. E foi lá também que João Gilberto teve a sua voz gravada pela primeira vez, num gravador de rolo Grundig, um trambolho daqueles. Além disso, Chico foi quem fez a ponte entre João Gilberto e Tom Jobim. Este, por sua vez, produziu os arranjos das primeiras músicas de João, que logo tornaram-no famoso e cultuado mundo afora. Fama mundial para os dois, aliás.
Ok, e o Galland? Ruy Castro conta mais sobre o fotógrafo Chico, que também tinha como hobbies o jazz, som, pesca submarina (era parceiro do Roberto Menescal nessa paixão pelo mar) e, vejam só, aviação! Putz, quando li isso, caiu a ficha de vez. Não podia ser outra pessoa.
Trata-se de Francisco Pereira Netto, famoso modelista do final dos anos 60. Na residência dele, a cada primeiro (ou último, não lembro) sábado de todo mês, aconteciam as famosas reuniões dos melhores modelistas da época. Tinha um aposento no grande apartamento só para estes encontros (por condições da patroa, que sempre mandava servir cafezinho. Bagunça e palavreado chulo, só ali dentro). O local era todo decorado e equipado com assentos de piloto para os convidados. Tinha hélices de aviões nas paredes, manches, ailerons, relógios e outros instrumentos de painéis (tudo de verdade mesmo!), além de prateleiras com caixas de modelos e toda a nossa tralha usual. Uma festa para os olhos. Eu era adolescente quando fui levado lá e conheci alguns modelistas veteranos da pesada e outros participantes, a maioria pilotos da aviação civil e militar. Todos bem mais velhos do que eu. Lembro de um certo Arnoldo, que só montava Me109’s, um melhor que o outro. Os caras usavam airbrush, tintas Humbrol e Pactra, kits e decais importados, etc., enquanto eu ainda estava no estágio do pincel, massa Wanda e Revell.
Passei a ir de vez em quando às reuniões, por volta de 1969, 70, por aí. Um dia eu fui apresentado a um senhor, com forte sotaque. Ele tinha no rosto cicatrizes de queimadura grave e as duas mãos eram bastante deformadas. Muito polido, conversou um pouco comigo. A mão que me cumprimentou quase não tinha mais dedos, mas eu fingi não notar. Depois me contaram que o Me109 dele foi abatido em missão na Rússia, por um caça soviético. O Me pegou fogo e o alemão não conseguiu saltar. O que o salvou de morrer carbonizado foi a neve, onde pousou de qualquer maneira. As mãos ficaram destroçadas enquanto tentava abrir a carlinga, no cockpit em chamas.
Uma vez eu notei uma placa de madeira pendurada na parede, com uma bela assinatura. Era do Adolf Galland. Perguntei se aquilo era real mesmo. Francisco respondeu, displicentemente, que o Galland era amigo dele, e quando esteve no Brasil apareceu umas vezes, para um papo. Foi quando pediram a ele para assinar a placa. Fiquei meia hora de queixo caído. Claro que nunca tive a sorte de encontrar O Cara ali, bebendo um cafezinho com a galera. Chico e Galland já morreram há muitos anos, mas a placa deve existir até hoje.
Francisco Pereira Netto era uma dessas pessoas que você fica honrado em conhecer. Do pessoal atual, sei que também o Manuel (El Coyote, na Webkits), o modelista veterano Jorge Costa e o “falado” Mendonça, que me levou lá pela primeira vez, o conheceram. Chico recebia todos, famosos e moleques desconhecidos, como eu, com a mesma cortesia. Eu sabia que ele era fotógrafo de publicidade e fotógrafo “oficial” da FAB, mas nunca soube do trabalho dele junto aos famosos da nossa música, até ler o livro do Ruy Castro. No mesmo estúdio caseiro onde eu o vi fotografando um produto comum para um anúncio, posaram celebridades como a cantora Maysa e muitos outros. Ele também foi autor do livro “Aviação militar Brasileira”.
Foi ele quem deu o empurrão para a fama em João Gilberto. Dez anos depois, Adolf Galland passava lá, para papear sobre aviação e assinar coisas, olha que chique. Duas lendas muito diferentes, no mesmo apartamento.